
Por: Nuno Valério
A Fundação Francisco Manuel dos Santos promoveu a formação de um comité, liderado por Ricardo Reis e constituído por Pedro Bação, Luís Aguiar-Conraria, Isabel Horta Correia, José Alberto Ferreira, José Tavares, Nuno Valério e José Varejão com o objetivo de identificar as situações de recessão que ocorram na economia portuguesa.
O trabalho já realizado por este comité foi a identificação das situações de recessão verificadas na economia portuguesa desde a proclamação da República. O resultado desse trabalho está disponível no endereço https://www.ffms.pt/estudos/crises-na-economia-portuguesa e no livro Crises na economia portuguesa: de 1910 a 2021 – Fundação Francisco Manuel dos Santos, Lisboa, 2023 e https://www.ffms.pt/sites/default/files/2023-11/CrisesEconomiaPortuguesa-WEB.pdf.
O trabalho foi realizado de modo diferente para os períodos
• de 1910 a 1980 – datação anual
• de 1980 em diante – datação trimestral
por duas razões:
• por um lado, a disponibilidade de dados como resultado do desenvolvimento do conhecimento estatístico da economia portuguesa;
• por outro lado, a natureza das flutuações económicas como resultado do grau de desenvolvimento da economia.
Na verdade, de 1910 a 1960, pode dizer-se que Portugal era uma economia medianamente desenvolvida, pelo que as recessões, embora fortemente condicionadas pela conjuntura internacional, especialmente as guerras e as crises mundiais ocorridas entre a segunda e a quinta décadas do século 20, foram sobretudo resultantes das flutuações da produção agrícola, de ciclo anual. Por outras palavras, as recessões ocorridas até 1960 foram, por regra, resultado de contrações fortes, regionalmente generalizadas e simultâneas das principais produções agrícolas portuguesas, nomeadamente os cereais, o vinho e o azeite.
A primeira recessão identificada iniciou-se em 1912 devido à redução da produção agrícola. Seguiu-se uma crise provocada pela perturbação de abastecimentos, particularmente de carvão e de trigo, como resultado da Primeira Guerra Mundial, crise acentuada a partir de 1916 com a participação de Portugal no conflito e consequentes ataques sistemáticos de submarinos inimigos à navegação para portos portugueses.
O fim da Guerra permitiu uma recuperação desde 1919, mas permaneceu um processo inflacionista iniciado com o conflito e que só começou a ser seriamente combatido com a reforma fiscal promulgada em 1922. O processo inflacionista pode considerar-se dominado no verão de 1924, mas o processo de estabilização financeira prolongou-se até 1931, com repercussões no nível da atividade económica e com impacto na evolução política, mas sem provocar qualquer recessão. As recessões ocorridas durante a década de 1920, mais precisamente em 1924 e em 1928, foram resultado de reduções da produção agrícola.
Apesar de ter, naturalmente, afetado a economia portuguesa, a Grande Depressão que abalou a economia mundial a partir de 1929 também não provocou nenhuma recessão em Portugal. Uma vez mais, as recessões verificadas durante a década de 1930, concretamente em 1935 e 1936, foram resultado de maus anos agrícolas.
O quadro manteve-se durante a primeira metade da década de 1940, marcada pelos sobressaltos da Segunda Guerra Mundial. Para a economia portuguesa, eles foram semelhantes aos da Primeira Guerra Mundial, mas menos graves, quer por Portugal não ter sido beligerante, quer como resultado da balança comercial positiva permitida pela excecional procura do minério de volfrâmio, do qual Portugal foi fornecedor crucial durante o conflito. Assim, as recessões que ocorreram, em 1940 e em 1945, foram de novo resultado de maus anos agrícolas.
Pode dizer-se que a última crise tradicional se verificou em 1952 e 1953, porque a economia portuguesa estava a começar a mudar. Entre o imediato segundo após guerra do século 20 e princípios da década de 1970, Portugal esteve entre os líderes do crescimento a nível mundial. Este processo de arranque e começo da consolidação de um crescimento económico moderno no sentido dado à expressão por Simon Kuznets foi potenciado pela participação no processo de integração europeia e permitiu uma industrialização, ainda que tardia e limitada. Como consequência, as recessões passaram gradualmente a resultar do impacto da conjuntura internacional e da interação das variáveis macroeconómicas, incluindo a política económica. É certo que a década de 1960 foi uma década sem crises, apesar das dificuldades causadas no seu início pelo desencadear da guerra colonial. A década de 1970, porém, assistiu a uma longa crise entre 1973 e 1978.
A longa crise de 1973 a 1978 foi resultado de três choques sucessivos. O primeiro foi o choque petrolífero de 1973 e a crise internacional por ele desencadeada. O segundo foram as perturbações resultantes do processo revolucionário, em particular o afluxo repentino de mais de meio milhão de retornados das antigas possessões portuguesas. O terceiro foram os problemas da balança de pagamentos verificados entre 1976 e 1978, fruto das políticas de estímulo à economia para contrariar os efeitos da crise internacional e absorver o enorme acréscimo de população provocado pela descolonização. Estes problemas desencadearam o primeiro episódio de recurso ao apoio do Fundo Monetário Internacional por parte de Portugal entre 1977 e 1979, com as habituais exigências de uma política orçamental restritiva.
A terciarização da economia e a integração nas Comunidades Europeias, mais tarde transformadas na União Europeia, consolidaram o processo de crescimento económico moderno em Portugal e, em consequência, as novas características das situações de recessão a partir da década de 1980, ao mesmo tempo que, como já referido, a melhor cobertura estatística permite a datação trimestral dessas situações.
Até princípios do século 21, verificaram-se três recessões:
• a primeira associada a um segundo episódio de recurso ao apoio do Fundo Monetário Internacional por parte de Portugal entre 1983 e 1985, naturalmente provocado por problemas da balança de pagamentos, resultantes agora a uma impacto diferido do chamado segundo choque petrolífero e de novo com exigências de uma política orçamental restritiva, que conduziram a uma recessão entre o segundo trimestre de 1983 e o primeiro trimestre de 1984;
• a segunda entre o terceiro trimestre de 1992 e o terceiro trimestre de 1993 associada à Guerra do Golfo, à reunificação da Alemanha e a uma situação de instabilidade no Mecanismo de Taxas de Câmbio do Sistema Monetário Europeu;
• a terceira entre o segundo trimestre de 2002 e o segundo trimestre de 2003 associada ao reajustamento necessário depois do primeiro episódio de défice excessivo no contexto do Pacto de Estabilidade e Crescimento.
A crise da titularização, internacionalmente conhecida como a Grande Recessão, teve impacto em Portugal, provocando uma recessão entre o segundo trimestre de 2008 e o primeiro trimestre de 2009.
A recuperação que se seguiu foi fugaz e nova recessão, associada ao que ficou conhecido como a crise das dívidas soberanas, afetou a economia portuguesa, agora de modo mais profundo e por um período mais longo, do quarto trimestre de 2010 ao primeiro trimestre de 2013. Em grande medida, esta recaída pode ser atribuída à descoordenação e ausência de apoio para países com desconfiança dos investidores como Portugal que caracterizou a resposta europeia à crise da titularização. Durante a crise das dívidas soberanas houve que recorrer ao apoio do Fundo Monetário Internacional, da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu e implementar uma política orçamental bastante restritiva.
A mais recente recessão verificada na economia portuguesa ocorreu no primeiro e segundo trimestres de 2022. Foi profunda mas curta e esteve associada à pandemia de covid-19. Vale a pena notar que a reação europeia foi melhor coordenada e com apoio coletivo aos países com potenciais dificuldades junto dos investidores, sendo depois seguida pelo Programa de Recuperação e Resiliência, o que consolidou a recuperação. Vale também a pena notar que a segunda vaga da pandemia já não provocou uma recessão, apesar das restrições à vida quotidiana que implicou, o que testemunha a boa adaptação da economia às dificuldades enfrentadas.
É este, em síntese, o trabalho apresentado e desenvolvido nas referências citadas no início deste texto. O trabalho futuro será, naturalmente, detetar, datar e analisar as crises que ocorrerem na economia portuguesa.
Numa avaliação da conjuntura atual, pode notar-se que a recuperação da crise da pandemia do Covid-19 desencadeou um processo inflacionista, agravado com o que os seus autores denominaram ‘operação militar especial’ da Rússia na Ucrânia, e que o combate a esse processo inflacionista provocou uma situação de estagnação na economia europeia. Esta situação pouco favorável, que poderá ser agravada com as repercussões da recente reativação do conflito entre Israel e a Palestina, ainda não provocou uma recessão em Portugal. O Comité estará, naturalmente, atento, à evolução desta situação.