Reformismo em tempo de eleições?

Por: Miguel Cadilhe

Com as presentes notas (*), agora que haverá lugar a eleições, pretendo lembrar que estamos muito precisados de políticas de produto potencial. Arrisco a dizer que, se a democracia portuguesa, por uma vez, pudesse pré-orientar estas coisas, os programas eleitorais deveriam ser avaliados, principalmente, pelos seus teores estruturais e pelos seus graus de reformismo, tal é a situação de necessidade em que nos encontramos.

  1. Todos o sabemos… Em termos de PIB per capita, em paridade de poderes de compra, Portugal tem sido ultrapassado por vários países da Zona Euro (Z€). Ora, podemos ver a Z€ como um contexto externo comum, na medida em que os países membros estão submetidos à mesma moeda e à mesma política monetária e cambial, além de terem os mesmos regimes de concorrência e livre comércio, de finanças públicas, etc. Se alguns países da Z€ estão progredindo mais depressa do que nós, eles subindo algumas posições, descendo nós seis posições em vinte anos na UE27, será então plausível admitir que o contexto interno é o que mais diferencia e desfavorece Portugal.
  2. Deveremos pois procurar no nosso contexto interno as razões deste subdesempenho comparativo de Portugal. Aí deveremos procurar, naturalmente, o que for mais estrutural, relativamente permanente, não o que for mais conjuntural. E para lidar com o contexto interno estrutural precisaremos de políticas estruturais, ou de políticas de produto potencial como gosto de lhes chamar. São políticas de grande reformador. Todavia, há anos que só avistamos grandes reformadores predominantemente absentistas.
  3. Se acaso me pedissem uma outra forma de introduzir a necessidade depolíticas estruturais, poderia recorrer ao survey da OCDE sobre Portugal, 2023, como poderia citar diversos outros relatórios internacionais sobre Portugal. Naquele survey, página 31, a OCDE traça cenários da dívida pública, em percentagem do PIB, até 2060. No cenário sem novas políticas estruturais e reformas estruturais, o rácio da dívida pública reacender-se-ia e atingiria os 160% entre 2050 e 2055.
  4. Muito em especial, precisamos de um grande reformador do próprio Estado. A omissão reformista do Estado põe a democracia sob riscos de mediocridade política e mantém a economia sob riscos de exaustão tributária, com todas as suas consequências. Refiro-me sobretudo à reforma do Estado-despesa corrente e à reforma do Estado-carga fiscal. É neles que mais se configuram o peso e a eficiência do Estado-administração, incluindo administrações da justiça, da saúde, da educação, dos custos de contexto, da subsidiariedade e da descentralização, etc. Refiro-me igualmente à reforma do Estado-sistema político e eleitoral, matéria sobre a qual há ideias e propostas bem assentes.
    Refiro-me, ainda e por outras palavras, à reforma do Estado-instituições, cuja qualidade vem dando razões de muita preocupação a muitos de nós.
  5. Não é indiferente o modo e o tempo como o grande reformador anuncia e realiza a reforma do Estado e os custos/proveitos da mudança. Nenhum programa estrutural de redimensionamento e reorganização do Estado, e de reconceituação dos seus regimes, deve ser concebido e executado sem respeitar os direitos tidos por fundamentais dos pensionistas, dos funcionários públicos
    e dos utentes dos serviços. Os pensionistas do regime contributivo, aliás, devem ser vistos como titulares de uma forma específica de dívida pública, na parte dos descontos entregues ao Estado.
  6. Em eleições, porém, o contra-reformismo tem terreno fértil. A argumentação de um promitente reformador do Estado pode ser, e concretamente já aconteceu, minada e supliciada por quem explora temores da função pública e agita fantasmas de recuo do Estado social. Por vezes, muitos votos movem-se pelo medo e por um rudimentar contra-reformismo. E assim, com pequena política,
    não vamos lá.
  7. Quase se conclui que o melhor seria o grande reformador ficar quieto e calado em tempos eleitorais. Eis uma probabilidade perversa. Contudo, bem que poderia o reformador explicar-nos a verdade dos seus projectos de grandes reformas e, ao mesmo tempo, antecipar um elenco de salvaguardas e medidas positivas, compensatórias, convincentes. Com clareza e inteligibilidade, poderia dizer-nos o porquê de um reformismo-bem compensado, em vez de um reformismo descompensado ou um arremedo, um zero de reformismo.

 


 

(*) Em parte, uso o prefácio que escrevi em Agosto 2023 para o livro Um Caminho para Portugal,
de Carlos Tavares e Sara Monteiro.

9 Responses

    1. Sim, colega e amigo MCP, talvez esse seja o mais difícil desígnio, a quase utopia do grande reformador. É um integral. É mais do que economia, muito mais. E chama por uma forte sociedade civil e pela qualidade das instituições. MC

  1. Concordo globalmente com esta análise. Como ilustre desconhecido, publiquei em 2023 um livro (com o título Comércio Internacional e Crescimento a Longo Prazo) que procura mostrar que, em todos os países sem exceção (a partir da Inglaterra no séc. XIX até à experiência mais recente da China), o crescimento duradouro (a longo prazo), do qual resulta o desenvolvimento económico e social, tem tido como fator decisivo o progresso técnico, e tem assentado na industrialização, nos serviços de alto valor acrescentado e no comércio externo (com exportações baseadas em especializações de elevado valor acrescentado). Mostro também que o valor médio exportado por empresa, que é revelador do estádio em que uma economia se encontra face ao processo referido, é, em Portugal, praticamente o mais baixo de todos os países da UE, com uma fraqueza relativa especialmente notória no que respeita às grandes empresas.
    Alfredo Marques

    1. Sim, tendo a concordar com AM. Julgo poder dizer que o livro de CT e SM, que prefaciei e cito, vai em geral em sentidos reformistas que não divergem do que AM refere. MC

  2. Mesmo a propósito…
    O último The Economist escolhe a Grécia como o país do ano 2023. Porquê?
    “(…) Greece shows that from the verge of collapse it is possible to enact tough, sensible economic reforms, rebuild the social contract, exhibit restrained patriotism— and still win elections. With half the world due to vote in 2024, democrats everywhere should pay heed.”

  3. Os governos de que o Dr Miguel Cadilhe foi um extraordinário Ministro das Finanças são bem o exemplo de que quando as reformas são bem concebidas, executadas e explicadas, os eleitores compreendem e apoiam essas reformas. É certo que, no curto prazo nem todos ganham com as reformas. Mas a arte dos governos está em encontrar mecanismos temporários de compensação para os “perdedores” e mostrar que no médio prazo todos saem beneficiados. Não se entende, por isso, que os políticos fujam das reformas e da sua discussão aberta, fundamentada e rigorosa. Infelizmente, o que temos visto nos períodos pré-eleitorais não é a discussão de políticas e de reformas, mas sim de medidas avulsas, que acabam por desaguar em perigosos “leilões” de promessas.
    Será diferente desta vez?

  4. Mais de três decénios passados, o “juízo em causa própria” não é sacrilégio, é útil. Pode mesmo ser razão de ponderação e inspiração em tempos eleitorais.
    Faz bem o colega e amigo CT em lembrar esse intenso reformismo da equipa das Finanças na 2.ª metade dos anos 8O. Pude então beneficiar, sempre, do seu conselho e das suas ações. É precioso o testemunho, como o seu, de quem viveu de perto essa rara circunstância reformadora.

  5. Excelente comentário/notas Doutor Miguel Cadilhe. Aqui reside o problema:
    “Muito em especial, precisamos de um grande reformador do próprio Estado. A omissão reformista do Estado põe a democracia sob riscos de mediocridade política e mantém a economia sob riscos de exaustão tributária, com todas as suas consequências. Refiro-me sobretudo à reforma do Estado-despesa corrente e à reforma do Estado-carga fiscal.”

    A questão é que o Estado/Adm. Publicas representam quase 1 milhão de votos e nenhum politico (s) tem a visão estratégica e a capacidade politica para “afrontar” esse exército de ineficiência e que iria, num grande número, para o desemprego….

  6. Só hoje pude ver e agradecer o comentário de Vitor Simões. A questão que refere pertence ao “dilema do grande reformador” em que infelizmente Portugal está caído – assim chamei e enunciei no livro “Sobrepeso do Estado”, 2005, reed. 2013. Naturalmente e peço-lhe desculpa, não concordo com as duas últimas linhas do seu comentário.

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