Os EUA e o Proteccionismo

Por: René Cordeiro

Membro Efetivo nº56

Considero útil identificar (as) causas das situações, dos movimentos, como melhor método de prevenção, e, assim, melhor encontrar protecção para os seus efeitos. Por isso, proponho que esqueçamos por algum tempo o estilo do Presidente dos EUA e, procurando outra perspectiva de análise, recordarei algumas passagens de livro que editei em 2021 (Seis Reflexões sobre Gestão).

“Finalmente, ocupo-me do tema que refiro no fim da Introdução: (…) o excessivo consumo a que assistimos. (…) Desenvolvo empiricamente estas considerações sobre a existência de excesso de consumo pela observação que todos fazemos no dia-a-dia: elevado número de estabelecimentos comerciais de todo o tipo – físicos ou virtuais – margens esmagadas que se sabe serem praticadas nos produtos de grande consumo; exemplos que todos conhecemos de casos particulares; fácil predisposição das pessoas para a aquisição; generalizado sentido do curto prazo, do imediato; facilidade e promoção de recurso ao crédito bancário (e facilidade na sua concessão) para consumo. Mas um indicador existe que permite uma conclusão objectiva” (para além de alguns números que ali apresento): “as baixas taxas de poupança e os baixos níveis de investimento indiciam que é para o consumo que os rendimentos são canalizados.

(…)

“Como frequentemente ouvimos dizer que o crédito às empresas só é concedido pelo mérito dos projectos apresentados e que os bancos têm liquidez para lhes emprestar mais mas que não existem projectos em número suficiente (com mérito que legitime a concessão do empréstimo, portanto), parece poder concluir-se que no crédito ao consumo existirá menos rigor na avaliação (do mérito) da sua concessão. Todos conhecemos inúmeros casos de facilidades concedidas e que se sinalizam, por exemplo, através de mensagens de sms enviadas por bancos a publicitar a concessão de crédito. E ouvimos muitos sofismas nas argumentações. Mas creio que a leitura correcta da aplicação daqueles três elementos nos diz que os bancos aceitam (atraem) depósitos (empréstimos) de curto prazo para promoverem investimentos de longo prazo. Ora, o crédito ao consumo não corresponde, certamente, a este perfil. Se este é o correcto, há qualquer coisa que não faz sentido. Só faz sentido, parece-me, quando verificamos que, por exemplo, as salvaguardas dos Estados à Banca para a proteger de eventuais repentinos e massivos reembolsos dos empréstimos (fornecimentos) dos seus depositantes permite-lhe outro perfil de negócio: a mais fácil concessão de crédito ao consumo, aquecendo a economia para além da capacidade dos rendimentos por ela gerados e alimentando a economia pull. É aqui que entra a sedução como falso motor de estratégias lesivas do interesse da economia, e da sociedade que esta serve.

“Como escreveu Fernando Pessoa, a propósito de nação: «Uma nação, em qualquer período é três coisas: uma relação com o passado; uma relação com o presente nacional e estrangeiro; uma direcção com o futuro».

(…)

“Até meados dos anos 90 do século passado, pode dizer-se que em todos os sectores da economia a Procura era maior do que a Oferta. Situação que designamos por economia push: o ‘produtor’ (as suas decisões) dominava — só tinha de ‘empurrar’ o produto para a ‘montra’.

“A partir de então, em muitos sectores, ao menos tendencialmente, e em particular nos dos bens de grande consumo, a Oferta começou a exceder a Procura. Iniciava-se assim a economia pull: o consumidor (as suas decisões) impera — tem de ser ‘puxado’ para a ‘montra’.

“O que significa todo um trabalho de persuasão do consumidor à compra em que a publicidade desempenha papel de destaque. Tal conduz a que o consumidor seja o decisor da aquisição, mas não da utilidade e qualidade do que recebeu. O leitor verificará bons exemplos no âmbito das fornecedoras de telecomunicações e de utilities. O reinado do consumidor resume-se à maior escolha pela variedade de artigos iguais ou semelhantes de diferentes marcas. Porque depois (…) andará atrás do fornecedor (bem protegido pela dificuldade de acesso e pelo anonimato dos contactos disponibilizados digitalmente) para assistência.

“Simultaneamente, (…) assistiu-se ao desenvolvimento das aplicações tecnológicas no domínio da comunicação, com a utilização da internet para fins de informação e acção comerciais, desenvolvimento que exponenciou a comunicação em todos os sentidos, deixando esta de ser essencialmente biunívoca, globalizando, agora de facto, a Procura e possibilitando à Oferta a aceleração de soluções operacionais adequadas à resposta a esta globalização. Este desenvolvimento tecnológico no domínio da comunicação é, pois, o instrumento que tornou de facto a ‘globalização global’.

“Por que defendo que a globalização da economia é um fenómeno do lado da Procura? Porque, existindo desde sempre conhecimento do produto através dos meios de divulgação possíveis em cada momento, o que as aplicações tecnológicas no domínio da comunicação permitiram foi a disponibilização universal de informação em tempo real. Não me parecendo existirem dúvidas de que foi a Procura (o consumidor) que primeiro se aproveitou do fenómeno (e continua a aproveitar) – pelo acesso que passou a ter ao conhecimento do produto, independentemente do local em que se encontra, e à possibilidade de interagir em qualquer momento com o seu fornecedor –, respondendo a Oferta de duas formas: assegurando a disponibilização do conhecimento do produto e a interacção com o utilizador/cliente e posicionando-se operacionalmente para a sua obtenção e entrega de modo eficiente … pela deslocalização de operações, sobretudo de produção, reforçando a deslocalização de operações comerciais que já se verificava designadamente por parte de multi-nacionais sem que, porém, se falasse de globalização (este termo, definido como «fazer mundial em âmbito ou aplicação» fez a sua primeira aparição no dicionário Merrian Webster de 1951). Assim, a Oferta, particularmente a exportadora sempre interessada na diminuição de custos de transacção, procedeu à transferência de produção para terceiros países porque assim tornaria os produtos mais baratos para os consumidores dos seus países (facilitando a sua venda) mas, nestes, prejudicando o emprego na indústria e, fomentando-o nos serviços, conduziu à diminuição dos rendimentos do trabalho e ao empobrecimento das tarefas. O que é factor de produção de tensões sociais que se vão verificando, frequentemente sem expressão clara da causa. Este empobrecimento de tarefas também conduz à imigração por os autóctones deixarem de exercer certas tarefas. E os que não deixam de as exercer, sujeitam-se a rendimentos inferiores. E o aumento da escolaridade, com diminuição do grau de exigência, não baixa as expectativas. Como sempre, a minoria de facto mais qualificada distingue-se e encontra soluções de trabalho domésticas, ou em países terceiros. O que a leva a não ser, ou a ser menos crítica da globalização.

“Como sabemos, os EUA foram os promotores da Globalização, certamente como uma das consequências da doutrina Monroe. E recordo que um dos argumentos (de vendedor) então utilizados era o contributo para retirar populações da pobreza, em que a da China estava incluída. Argumento que deixou de ser válido, de acordo com o princípio do realismo político de Maquiavel.

“O Economista Dani Rodrik, no livro The Globalization Paradox: Why Global Markets, States, and Democracy Can’t Coexist, titula um capítulo com uma interrogação que, na sequência das observações que venho fazendo, faz pensar: Can You Save an Economy by Tying it to the Mast of Globalization? A pergunta está relacionada com o trilema Hiperglobalização * Políticas Democráticas * Estado-Nação e a resposta passa, segundo o autor, por uma escolha entre dois pólos, sendo inviável a opção pelos três. Que dois pólos devemos escolher? A quais devemos, no interesse de Portugal, dar preferência?”

Nos três cenários que apresentava como possíveis, como previsão da «nova norma» a ser estabelecida, apresentei como mais provável,
“i) Mais economia push, regredindo os hábitos de consumo, necessariamente com efeitos (já vistos acima) sobre a Oferta ocidental: como haverá menos rendimento disponível (por redução do crédito ao consumo), esta vai adequar-se. Como? Necessariamente com regresso de operações, particularmente do fabrico e de serviços, aos países de origem das firmas em ordem a promover o seu produto interno e aumentar o rendimento dos residentes … Logo, a concorrência reduz-se, a Procura diminui, a mudança torna-se mais lenta, a inovação é menos frequente, a competência operacional (mesmo se ineficiente) torna-se suficiente, os recursos financeiros desviam-se do consumo para o investimento, … Não se verificando este cenário manter-se-á ou reforçar-se-á o cenário ii): A economia pull com manutenção ou aumento do crédito ao consumo.

“Em qualquer dos cenários, a manutenção do papel da net e da interconectividade para efeitos comerciais continuará a verificar-se. … A Procura em linha da Oferta Ocidental no cenário i) encontrará necessariamente os preços dos produtos aumentados, continuando a encontrar preços mais baixos nos produtos oriundos da China e enquanto tal lhe for adequado (e o Ocidente, particularmente os EUA, o aceitar). O que significa que a Procura portuguesa tenderá a privilegiar os produtos com menor preço independentemente da sua origem. … E a China vai conseguir, ou entender, manter baixos os preços das coisas que vende durante quanto tempo? Como vão os países de residência da Procura dessas coisas (em que os ocidentais têm lugar privilegiado) assegurar que ela se verifique praticando a Oferta Ocidental preços necessariamente mais elevados a que o regresso ao interior das suas fronteiras das fábricas que antes deslocalizou para a China conduzirá?

“A globalização da Procura – respondendo a Oferta ocidental principalmente com a deslocalização de operações de fabrico, transformou a China na fábrica do mundo e no maior aforrador (…) e o Ocidente no maior consumidor e gastador (com inevitáveis consequências nas dimensões das suas dívidas) – levou a uma ‘globalização da economia’ mantendo-se a estrutura política do mundo baseada na nação-estado como bem argumenta Henry Kissinger em A Ordem Mundial, conduzindo (?) à armadilha de Tucídides: “a reacção de um Estado dominante por outro que se ergue desafiando aquele domínio”.

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