
Por: João Abel de Freitas
Membro Efetivo nº11400
1. O País está ferido e, por muito tempo continuará, a não ser que, de modo célere mas sustentado, se apresentem resultados credíveis sobre as razões do trágico acidente e assumidas as responsabilidades política e técnica do acontecimento. Só, assim, a ferida profunda ficará sarada no País e face ao Exterior.
Uma semana após a tragédia de Lisboa, hesitei escrever sobre este assunto. Já “tudo” parece ter sido dito e não é frequente nos meus artigos de opinião a temática nacional. A Cimeira da Organização de Cooperação de Xangai que decorreu de 31 de Agosto a 1 de Setembro últimos, em Tianjin/Norte da China, estava na calha e espera leitura, pela sua relevância política no Mundo do Futuro. Abordá-la-emos em breve.
No entanto, a tragédia de Lisboa pela dimensão e consequências na vida do País não podia deixar de ser comentada.
Acresce ainda o receio das verdadeiras causas deste grave acidente não virem a público, em tempo oportuno, por razões da mais variada índole, designadamente a época de eleições autárquicas. É bom lembrar. O País aguarda ainda pelas causas do apagão de 28 de Abril. Passaram-se quatro meses e já ninguém fala, a não ser que chegue aí um outro apagão. Neste grave acidente de Lisboa, não há a desculpa de partilha de culpas com a vizinha Espanha.
2. Começo por uma sensação global: a ênfase dada aos temas abordados peca por algum desequilíbrio, apesar do trabalho meritório dos media, que encontraram pela frente um muro de não respostas, de quem devia não fugir a responder.
Primeira nota. Embora se tenha falado, deu-se pouco valor aos sucessivos alertas lançados pelos trabalhadores da Carris do deficiente funcionamento do Elevador que ocorriam, desde há bastante tempo, no dia a dia, sobretudo dificuldades do sistema de travagem. Estranha-se, assim, a defesa árdua da empresa MAIN, adjudicatária da manutenção pelo Presidente da Carris, Pedro Bogas, de que as condições do protocolo tinham sido escrupulosamente cumpridas.
Como se entende, por exemplo, uma inspecção de 33m na manhã da tragédia com o sucedido? No mínimo, fica-se atónito! Uma inspecção técnica de 33 m!! Quase não dá para “reler” as condições do caderno de encargos, ou será que o caderno de encargos não passa de preenchimento burocrático de formulário, não contendo campos relevantes da manutenção a observar?! Um problema a merecer esclarecimento, tanto mais quando se leu que recuando no tempo, o tempo de observação era bem mais alargado. O que mudou para encurtá-lo?
Segunda nota. Algures, em 2018, houve um descarrilamento bem mais benigno, sem mortes. Mas à vista ficaram falhas de manutenção, entre elas, na ligação entre as rodas e carris. Um desgaste enorme. O que aprendi é que as rodas têm de ser torneadas, periodicamente, para que o encaixe roda/carril funcione ajustado. Não seria que a realidade presente estaria próxima da de então?! A ser verdade, como pode falar-se em cumprimento do caderno de referência, a não ser admitindo que este estaria mal formatado?! Mas será possível algo tão básico ter sido esquecido?! Penso de novo no tempo de 33m para uma observação rigorosa do estado do equipamento…!
Terceira nota. O Elevador da Glória, um equipamento antigo, longe das modernas técnicas de segurança, sem mecanismos de alerta de segurança, certamente a exigir cuidados redobrados muito precisos. Daí, a dúvida sobre se a decisão de externalização da manutenção tenha sido acertada, quando se trata de um nicho de mercado muito específico de oferta de resposta altamente qualificada. Onde encontrar empresas especializadas, eis uma importante questão.
Não conheço o mercado da oferta, mas tenho imensas dúvidas. A experiência e o conhecimento existiam na Carris. Porquê aliená-los? Este nicho de elevadores públicos com as suas especificidades não tem dimensão para “alimentar” um núcleo de empresas habilitadas, candidatas a concursos. Daí, as minhas dúvidas no sucesso desta externalização. Li no “Público” que a empresa contratualizada, a MNTC, mais conhecida por MAIN tem sede em Almada, foi criada há 15 anos com 28 trabalhadores (sensivelmente o mesmo que fazia a manutenção na Carris antes) e embora tenha outros clientes, o principal é a Carris.
Sou levado a pensar que não se está perante uma decisão acertada. Melhor teria sido autonomizar uma pequena empresa, dentro do universo da Carris, para onde a experiência de muitos anos se transferisse neste novo modelo de organização empresarial. Esta PME poderia até prestar serviços a outros elevadores, dispersos pelo País, que os há, porque reunia know-how muito próximo e não recorrer a empresas criadas sem bases técnicas ou de conhecimentos meramente livrescos. Nada se sabe sobre a MAIN, sobretudo a qualificação dos seus técnicos e menos ainda sobre as concorrentes.
Quarta nota. Sobre o crescimento exponencial do uso dos Elevadores Públicos. Todos sabemos que o turismo em Lisboa e no País cresceu bastante nestes últimos anos. E ainda bem. Mal, porque cresceu de forma não planeada sob todos os ângulos, designadamente o alojamento. Sou a favor do desenvolvimento do turismo. O que lhe tem faltado e grave é um trabalho cuidadoso de antecipação de impactos para sustentar um planeamento integrado adequado, onde os transportes são uma valência de grande significado. A débil cultura nacional de prevenção no planeamento mais uma vez vem ao de cima. Será de admitir, então, que esta evolução tenha sido pouco contemplada no caderno de encargos para a definição da qualidade dos actos de observação e manutenção?
Quinta nota. A hierarquia entre Carris e CML funcionaria adequadamente? Formalmente, sim. Foi Carlos Moedas quem nomeou o Presidente da Carris. Mas não é este o ângulo da questão. Havia uma troca fluida de informação entre Carris e Câmara, sobre a qualidade dos serviços da Carris prestada à população residente e em trânsito em Lisboa? Sem dúvida, um meio de averiguação da satisfação ou insatisfação da população para gestão camarária no domínio dos transportes.
Carlos Moedas ao tempo do acidente quase desapareceu, ou melhor, emudeceu, não respondendo às perguntas da comunicação social (reconheceu isso no domingo na SIC, onde politizou o doloroso acontecimento). Esta postura não indicia bons augúrios para o trabalho de apuramento da verdade. Constitui uma fuga para a frente no assumir de responsabilidades e, sem dúvida, o Presidente da Câmara é o responsável político máximo desta tragédia que feriu Lisboa e o País, e o Presidente da Carris o responsável técnico, e neste caso, se é verdade que apresentou a demissão, fê-lo bem. Ele é o responsável máximo pela operacionalidade global da empresa. Segundo ouvi na SIC, em primeira mão, Carlos Moedas não aceitou. Não será que esta decisão de Carlos Moedas pode ser interpretada como uma barreira para si próprio?
Muitas dúvidas, muitas incertezas, muitas incoerências e contradições sobre temas variados no campo da gestão estratégica ficam por anotar.
A finalizar uma nota. Ficou uma ideia consistente de que Carlos Moedas fugiu, desorientado, escondendo-se atrás das vestes do Presidente da República e do primeiro-ministro, pelo menos numa primeira fase. Atitude altamente negativa numa Autarquia de tanto relevo como Lisboa. Defendemos o apuramento rigoroso dos factos em tempo oportuno e assumpção de responsabilidades, a bem de Lisboa e do País. Os indícios, contudo, não apontam nesse caminho.
In Jornal Económico – 10 de setembro de 2025
O trágico acidente do Elevador da Glória é um duro golpe no Portugal seguro