
Por: António Mendonça
Bastonário
A Europa não pode ser simples espectadora dos acontecimentos, limitando-se a invocar princípios que mais não são do que disfarces para a falta de estratégia e inépcia que a tem caracterizado.
Fazendo jus ao símbolo do seu Partido, Donald Trump reentrou na cena política e económica, como um elefante numa loja de porcelanas. Para lá da imagem paquidérmica que possamos associar à forma como as novas medidas de política comercial e de posicionamento internacional foram anunciadas, a realidade é que o mundo mudou e nada ficou como dantes.
Isto, apesar das reações tímidas e cautelosas da generalidade dos responsáveis dos países vizinhos e europeus que parecem não ter compreendido que não se está apenas a assistir ao simples anúncio de medidas protecionistas, mas em presença de uma mudança qualitativa na relação dos EUA com o Mundo, que se vem desenvolvendo ao longo das últimas três ou quatro décadas e que se acelerou, sobretudo a partir da crise económica e financeira de 2008-2009. Que terá em Trump uma expressão histriónica, mas que se encontra em continuidade com a ação de Biden e mesmo de Obama, no sentido de uma “reterritorialização” do poder da economia americana.
Uma mudança qualitativa cujo desfecho final é ainda impossível de prever, em toda a sua dimensão, na medida em que o que está em movimento é uma radical alteração do sistema de relações de forças e da arquitetura do poder global que se afirmou no pós Segunda Guerra Mundial.
É importante relembrar que o fim do sistema monetário internacional de Bretton Woods terminou precisamente com o anúncio feito pelo presidente Nixon, em agosto de 1971, de suspensão unilateral da convertibilidade-ouro do dólar, suspensão das ajudas externas e a aplicação de uma tarifa excecional de 10% sobre as importações, provocando a primeira crise económica mundial do pós-guerra, a brutal subida do preço do petróleo e o lançamento sobre os países europeus e importadores de petróleo, dos custos da recuperação do papel internacional do dólar. Esta intervenção unilateral dos EUA teve, como contrapartida positiva, a reação imediata dos responsáveis europeus, com a aceleração do processo de integração europeia que levou à criação do euro.
A situação atual é muito semelhante à do início dos anos 70 do século passado, com os EUA a registarem défices na sua balança corrente, agora em estreita articulação com os défices orçamentais e o aumento da dívida pública, onde a maior competitividade europeia poderá ter desempenhado algum papel. Mas a causa fundamental está no modelo de economia global afirmado, a partir do início dos anos 90 do século passado, pela articulação dos EUA com a China, em que esta se integrou na economia global através da ligação privilegiada ao dólar, aceitando investimento direto americano em troca de excedentes comerciais com os EUA, pagos em dólares que eram reenviados para a origem, através da aquisição de títulos americanos.
Este modelo, de parceria tácita EUA-China, entrou em rotura com a crise de 2008-2009, mas não deixou de ter efeitos estruturais na economia global que se prolongaram e acentuaram depois disso, com a afirmação económica, tecnológica, política e militar da China que veio provocar a desestabilização do sistema de relações de força e da hegemonia americana na economia global.
E, se o que vem aí é difícil de prever, a Europa não poderá ser simples espectadora dos acontecimentos, limitando-se a invocar princípios que mais não são do que disfarces para a falta de estratégia e inépcia que a tem caracterizado. De vez em quando, faz sentido reler os clássicos, fundadores da civilização ocidental, como o poeta Horácio e as suas Sátiras.
In Jornal Económico – 14 de fevereiro de 2025
Uma resposta
O artigo “De te fabula narratur!” levanta uma questão crucial: a necessidade de a Europa agir de forma unida para proteger os seus interesses num mundo cada vez mais multipolar e instável. Contudo, essa unidade só será eficaz se estiver baseada numa identificação clara dos interesses comuns e na exclusão dos países que, por alinhamentos políticos e estratégicos, se tornaram obstáculos a esse projeto. Por exemplo, a Hungria, pelas suas ligações à Rússia e pela sua política externa frequentemente desalinhada com os valores e objetivos europeus, poderia ter de ser afastada desse núcleo central.
A relação da Europa com os Estados Unidos também merece uma reflexão profunda. Historicamente, os EUA nunca foram um aliado totalmente fiável para a Europa. Durante a Guerra Fria, a divisão geopolítica entre EUA e URSS prejudicou os interesses europeus, relegando o continente a uma posição secundária. Adicionalmente, os EUA falharam de forma continuada a proteção contra a ameaça soviética. Portugal, por exemplo, esteve à beira de cair sob influência da URSS, e os EUA mostraram pouca disposição para impedir tal desfecho. Além disso, a descolonização europeia, em particular de Portugal e da França, ocorreu de forma caótica e sem apoio estratégico, deixando territórios vulneráveis a influências externas hostis. Esta postura tem sido reiterada na história recente, com os EUA a abandonarem aliados e territórios quando os seus interesses assim o exigem, como demonstrado pelo abrupto fim da sua presença no Afeganistão.
Face a este contexto, a Europa precisa de garantir a sua própria segurança e autonomia estratégica. Para tal, terá que desenvolver uma capacidade nuclear comparável à dos EUA e da Rússia, assegurando a sua capacidade de dissuasão. Além disso, a UE deve expandir significativamente as suas forças armadas, aumentando o seu contingente de 1,5 milhões para 4 milhões de soldados, de modo a superar a capacidade de mobilização da Rússia e Bielorrússia, que juntas contam com cerca de 3 milhões de efetivos. Esta estratégia de reforço militar só será eficaz se a Europa também desenvolver uma base industrial de defesa autossuficiente, à semelhança do que acontece nos EUA, na Rússia e na China, onde as forças armadas são abastecidas quase exclusivamente pela indústria nacional. Para viabilizar esta expansão, seria necessário um investimento substancial e um esforço coordenado para harmonizar os orçamentos de defesa entre os países da UE, garantindo uma alocação eficiente de recursos e evitando redundâncias.
Por fim, a questão da liderança e da autonomia de decisão dentro da Europa não pode ser ignorada. Decisões estratégicas como o envio de tropas ou o aumento do orçamento para a defesa nunca serão populares se forem submetidas a “referendos”. Tal como a Constituição Portuguesa proíbe referendos sobre impostos – porque a população inevitavelmente votaria contra – também a segurança e a soberania não podem estar sujeitas a decisões puramente populistas. Há que garantir uma liderança forte e uma instituição europeia dedicada a essa missão, legitimada e aceite pelos cidadãos europeus. Um exemplo de uma instituição com autonomia técnica bem-sucedida é o Banco Central Europeu (BCE), que, independente das pressões políticas de curto prazo, tem a responsabilidade de gerir a política monetária da zona euro. Da mesma forma, a defesa europeia poderia ser gerida por uma instituição com um mandato técnico, independente dos interesses eleitorais nacionais, mas sujeita a mecanismos de prestação de contas democráticos.
Esta nova entidade de defesa europeia poderia ter um funcionamento semelhante ao BCE, com uma estrutura supranacional independente, um conselho de especialistas militares e estratégicos e um financiamento multilateral. O seu objetivo principal seria coordenar as estratégias militares da UE, assegurar o desenvolvimento tecnológico e industrial da defesa e garantir uma resposta rápida e eficaz a crises internacionais. Dessa forma, a Europa poderia fortalecer a sua autonomia estratégica e reduzir a dependência dos EUA, assegurando a sua segurança e soberania de forma sustentável.