A “reindustrialização” na Zona Euro e em Portugal, seus obstáculos e desafios

Por: Eduardo Catroga

1. Os governos da Zona Euro (o “núcleo duro” motor da União Europeia) têm vindo a definir políticas de “reindustrialização” para os seus países, visando, em geral, o aumento do peso relativo da indústria transformadora na estrutura económica (no PIB e no Emprego) e, em particular, o desenvolvimento de certas indústrias consideradas “estratégicas” (exs.: semicondutores; farmacêutica; equipamento para as energias renováveis; baterias; electrolisadores, etc.).

As chamadas “políticas industriais” intervencionistas, executadas sobretudo nos anos de 1960-1970, foram, em geral, abandonadas nas últimas décadas, pois os governos não são, em regra, bons decisores na selecção de projectos em função de critérios de racionalidade económica e das tendências concorrenciais e tecnológicas ou de mercado crescentemente complexas, o que condiciona a qualidade de alocação de recursos na economia e, logo, o crescimento potencial. Uma política pública diferente será – uma vez definidos os apoios financeiros e fiscais possíveis para investimentos selectivos com certas características estruturais – estimular projectos empresariais com riscos também assumidos pelo sector privado. Tais políticas, que implicam ajudas do Estado, terão, naturalmente, de se adaptar às regras da concorrência definidas em cada espaço económico, de modo a não se distorcer o funcionamento competitivo dos mercados.

2. Na Zona Euro, o peso relativo médio de valor acrescentado bruto (VAB) da indústria transformadora no PIB total tem apresentado, nas últimas duas décadas, uma tendência de estagnação (à volta de 15%, com flutuações de curto prazo), enquanto o peso no emprego tem vindo a cair (18% em 1999; 13% em 2022).

Em Portugal, o contributo da indústria transformadora no PIB é da ordem da média da Zona Euro, tal como a Espanha, e um pouco inferior à média da UE-27 (cerca de 17%). Com valores abaixo da média, temos, por exemplo, a Holanda e a França (à volta de 13%) e, acima da média, destacam-se a Irlanda (cerca de 33%), e a Alemanha, a República Checa, a Polónia, a Hungria e a Eslováquia, todos com valores bastante acima de 20%.

Recorde-se que a União Europeia definiu em 2014, “na Estratégia Europa 2020”, o objectivo de 20% para o conjunto dos Estados-membros, o qual não foi atingido.

No novo contexto internacional, entendemos que existe, em vários segmentos da indústria transformadora, um potencial de crescimento a explorar quer na Zona Euro, quer em Portugal. A Zona Euro está em concorrência na atracção de investimento com outras economias e espaços económicos, e existem alguns obstáculos que levantam desafios importantes.

O primeiro obstáculo: a produção manufactureira mundial tem vindo a crescer, o que significa que a europeia tem perdido quota, o que exigirá esforço acrescido de recuperação. Desde 1999 (base 100), a produção manufactureira na economia global aumentou cerca de 80 pontos percentuais (p.p.) e o emprego aplicado, cerca de 40 p.p. Tal significa que a chamada “desindustrialização” não é um fenómeno global, afecta determinadas regiões e determinados países em função da sua competitividade relativa.

O segundo obstáculo: na Zona Euro, os custos de produção são mais elevados, relativamente aos países emergentes e à China. As estimativas (Zona Euro = 100) apontam para um nível superior de custos, respectivamente, de 45 p.p. e de 25 p.p., uma desvantagem competitiva muito significativa.

Um terceiro obstáculo: a Zona Euro investe menos que os EUA em despesas de I&D; nas duas últimas décadas, menos cerca de 1% do PIB em média anual, o que, em termos acumulados, é um diferencial negativo enorme. Por outro lado, o investimento em ICT (“Information and Communication Technologies”), em relação ao PIB nominal, é da ordem dos 4% nos EUA, contra 2,5%. Acresce que a inovação nos EUA se tem revelado mais eficiente na orientação para o mercado. A China, por seu turno, já está ao nível da Zona Euro nas suas despesas de Investigação e Desenvolvimento (I&D).

Um quarto obstáculo: a chamada “reindustrialização” exige aumento do consumo da energia e os EUA são auto-suficientes com preços mais competitivos. Por seu turno, a China tem um “mix” energético que conduz a um custo médio inferior ao europeu, pelo menos no curto prazo. Na Zona Euro, a desvantagem competitiva é evidente para o caso da Alemanha, o “motor” da economia europeia e um dos países com um peso relativo da indústria transformadora mais elevada na sua estrutura produtiva (cerca de 23% do PIB). 

Por outro lado, na comparação EUA/Zona Euro para a escolha de localização de projectos industriais, importa realçar que o fraco crescimento potencial relativo da Zona Euro não ajuda a tal desiderato. Neste campo, os factores determinantes são a evolução da demografia e da produtividade, muito mais dinâmicos nos EUA. O grau de envelhecimento populacional é relativamente mais elevado na Europa, com reflexos na disponibilidade de mão-de-obra activa e no crescimento do emprego, o que exigiria maior dinâmica no crescimento da produtividade. A produtividade per capita (1995 = 100) cresceu no período de 1995-2022, em 170 p.p. nos EUA e apenas cerca de 120 p.p. na Zona Euro.


PIB, Variação Média Real (em %)

Fonte: AMECO

3. Dos elementos anteriores ressalta que a Zona Euro (repetimos o “núcleo duro” e motor da UE) tem um conjunto de vulnerabilidades competitivas na atracção de investimento em comparação com os EUA e outros países. Para os ultrapassar, precisa de um novo ímpeto reformista, reflectindo e actuando sobre um conjunto de questões estratégicas críticas, nomeadamente: vias para a aceleração do crescimento económico e da produtividade; qualidade e quantidade da despesa pública; competitividade fiscal; revisão das regras de concorrência e das “ajudas” de Estado; melhoria contínua do sistema educativo e de formação técnico-profissional; novas políticas de migração; maior gradualismo na transição energética em função do estádio das várias tecnologias e dos custos envolvidos; aperfeiçoamento na arquitectura da Zona Euro; reforço das emissões de dívida europeia para fins estratégicos seleccionados; “regras de governança”  e “timings” dos alargamentos previstos, etc. Uma agenda complexa que exigiria uma nova geração de líderes com visão estratégica e vontade reformista a nível europeu e dos governos nacionais.

4. Tendo em vista o objectivo da “reindustrialização” nas indústrias globais “estratégicas”, os EUA estão a implementar importantes apoios financeiros para os investimentos (“gigafactories”), que consideram nucleares no novo contexto de rivalidade estratégica com a China. No objectivo de manter a sua superioridade tecnológica e, logo, a superioridade militar, são as novas medidas inseridas nos pacotes federais “Inflation Reduction Act” (IRA) e no “Science and Chips Act” (Chips Act). A Europa, igualmente, reforçou os apoios nos domínios de projectos estruturantes, visando obter uma menor dependência estratégica de terceiros, apoios integrados no pacote “Next Generation EU”, a fim de se estimular a transição energética e a transição digital.

Em ambos os espaços económicos (EUA e Zona Euro), os valores dos apoios são aparentemente muito semelhantes em função do PIB nominal. No entanto, como o valor do PIB nominal nos EUA é cerca de 30% superior ao europeu, somos conduzidos a montantes absolutos muito mais elevados nos EUA do que na Europa. Porém, não há dúvida que a União Europeia, no actual contexto concorrencial, conseguiu dar um impulso significativo, congelando até, na prática, as suas regras de “ajudas de Estado”. Mas não é suficiente face à magnitude dos desafios concorrenciais em frente.

De notar que os apoios de financiamento a projectos estruturantes, que levam a uma partilha de riscos dos investimentos envolvidos, são um elemento importante no processo de decisão dos investidores. Todavia, a competitividade relativa da Zona Euro e de cada Estado-membro depende de uma multiplicidade de factores de competitividade, sobre os quais há que actuar coerentemente de modo continuado, tanto a nível da Zona Euro como de cada um dos países. A competitividade relativa é o elemento estratégico determinante.

5. Portugal precisa de aumentar o seu “stock de capital” e de atrair projectos de investimento de valor acrescentado elevado em todos os sectores dos bens e serviços transaccionáveis e não apenas na indústria transformadora.

Portugal pode tirar proveito nos próximos tempos da tendência para a chamada “reindustrialização” da Europa (e também dos EUA) e para a “regionalização” de algumas cadeias de produção global. Este movimento já se vinha a detectar antes da crise sanitária global e mesmo antes da guerra comercial EUA/China reforçada por Trump (2017). 

Importa distinguir dois tipos de deslocalização (reshoring): o impulsionado pelos governos com subsídios significativos em sectores considerados politicamente como “estratégicos”; e a deslocalização determinada por fundamentos de racionalidade económica empresarial. O segundo tipo de deslocalização é mais saudável e já estava em curso antes da crise pandémica de 2020, por razões de diversificação de riscos e de gestão geográfica do portfólio das actividades da cadeia de valor por parte de empresas multinacionais. O primeiro tipo de reshoring, de cariz mais político, começou a ser estimulado pelos governos na sequência do facto de a pandemia do novo “coronavírus” ter criado a percepção de que é insuportável a dependência externa da Europa (como também aconteceu nos EUA) de algumas produções de bens, nomeadamente da produção na indústria farmacêutica e equipamento médico. Esta interiorização veio dar força aos críticos da globalização e aos defensores da “reindustrialização”, apontando os malefícios que advêm para as indústrias transformadoras nacionais da “deslocalização” das últimas décadas para os países emergentes e, sobretudo, após a entrada da China na Organização Mundial do Comércio (2001).

Neste novo ambiente político e económico, Portugal poderá ter uma nova oportunidade para a dinamização do investimento nacional e do investimento directo estrangeiro (IDE), utilizando adequadamente os fundos europeus significativos previstos no Quadro Financeiro Plurianual de 2021-2027 (Portugal 2030), e do Economic Recovery Plan (PRR), este último aprovado pela União Europeia na sequência da pandemia. A que acresce a capacidade de acesso a empréstimos e garantias da União Europeia e do Banco Europeu de Investimento, às iniciativas do Fundo Europeu de Investimento (FEI), que opera nas economias europeias numa lógica de “fund of funds” de investimento para a dinamização de projectos empresariais com potencial de expansão.

Porém, para aproveitar estas novas oportunidades de “ouro”, Portugal tem de ter uma visão estratégica de ambição para o crescimento económico, para a melhoria da produtividade (a fonte da prosperidade económica e social) e saber implementar uma política económica e social integrada e coerente, que privilegie a expansão do sector produtivo, o aumento da dimensão empresarial e a inovação orientada para o mercado. 

Portugal tem recursos, capacidades e competências para incrementar o investimento produtivo em todos os sectores: indústria extractiva; agricultura e agroalimentar; actividades ligadas ao mar; fileira da floresta; segmentos da indústria transformadora (aprofundando a renovação dos chamados sectores mais tradicionais e introduzindo novas actividades em segmentos ou “nichos” com potencial de internacionalização); energia; turismo premium; saúde; ambiente; indústria de defesa e aeronáutica; indústrias criativas; serviços de valor acrescentado. 

Em todos, temos já casos de sucesso competitivo que importa multiplicar. No processo contínuo de renovação estratégica das “indústrias tradicionais”, o impulso de políticas no sector automóvel aparece como uma necessidade imperiosa face às transformações em curso no sentido de uma electrificação acelerada. A captação de investimento para o fabrico de veículos eléctricos ou para a manufactura de baterias (onde se concentre maior criação de valor na cadeia de produção) constitui um desafio que Portugal terá de ganhar. A Espanha e outros países, neste momento, parecem ter ganho alguma vantagem em tal objectivo, pois afectaram verbas significativas dos respectivos PRR nos apoios a tais investimentos. 

O nosso País terá de saber estimular investimentos racionais nas cadeias de produção de extracção de lítio, refinação de minério, baterias eléctricas e de reconversão em geral do cluster do automóvel, exigida pela mudança dos motores de combustão para motores eléctricos, em fase de grande desenvolvimento tecnológico e com grande impacto futuro na criação de riqueza e no crescimento potencial.

Por outro lado, Portugal poderá posicionar-se adequadamente na adaptação estratégica exigida por uma transição acelerada digital e por uma transição energética inteligente que seja competitiva, com racionalidade estratégica e económica e sem fundamentalismos.

6. As desvantagens competitivas na captação de investimento face aos outros países concorrentes terão de ser vencidas. As medidas estruturais para ultrapassar as vulnerabilidades deverão basear-se num benchmarking dinâmico com os países nossos concorrentes. 

Portugal tem de aumentar o stock de “capital físico” que, a par do “capital humano” e do “progresso tecnológico”, constitui factor determinante da produtividade.

O aumento do investimento produtivo e o do investimento público infraestrutural, criteriosamente escolhidos, são desafios críticos. Temos um défice de investimento de “capital por trabalhador”, o que foi agravado nos últimos anos. De 2015 a 2022, a taxa de variação foi negativa de -9,8%. Em 2022, o nosso País tinha um stock de capital de 107,8 mil euros por trabalhador, que compara com 192,6 mil euros da média comunitária, donde resulta a necessidade de se privilegiarem a poupança e o investimento nas opções de uma política económica e social viradas para o crescimento, a produtividade, a competitividade e o emprego.

É fundamental a identificação dinâmica dos nossos pontos fortes e dos nossos pontos fracos relativos, assim como a existência de uma vontade política reformista para a execução das acções estruturais conducentes ao nosso melhor posicionamento relativo nos rankings de competitividade. 

Os relatórios anuais de algumas instituições internacionais (exs.: World Economic Forum, IMD, OCDE) e os estudos de alguns think-tanks nacionais (exs.: Sedes, Fundação Francisco Manuel dos Santos) fornecem indicações preciosas sobre as acções a desenvolver para a melhoria dos factores de competitividade. Contudo, a direcção estratégica das medidas estruturais deve ter como pressuposto que Portugal optou por uma economia de mercado, que se pretende vencedora na economia global, o que exige a preocupação de uma melhoria contínua dos níveis de produtividade e competitividade, para se poder ir ao encontro da satisfação das expectativas das pessoas e que seja socialmente inclusiva.

Recentemente, quando a Ordem dos Economistas me agraciou com o título de “Economista Emérito”, tive oportunidade de caracterizar, dentro de tal pressuposto, “A Minha Visão Estratégica como Economista” (ver site da Ordem), onde explicitei, mais detalhadamente, o que designei como uma “política económica e social integrada e coerente”, que entendo necessária para que Portugal vença os desafios políticos, económicos e sociais do futuro.

3 Responses

  1. O debate sobre a economia portuguesa tem-se centrado essencialmente na repartição do rendimento, nos seus diversos aspectos. Daí a importância deste artigo que aborda a esfera produtiva, dando relevo à necessidade imperiosa de se aumentar a produtividade, racionalizando o investimento produtivo.

  2. Concordo globalmente com esta análise. Como ilustre desconhecido, publiquei em 2023 um livro (com o título Comércio Internacional e Crescimento a Longo Prazo) que procura mostrar que, em todos os países sem exceção (a partir da Inglaterra no séc. XIX até à experiência mais recente da China), o crescimento duradouro (a longo prazo), do qual resulta o desenvolvimento económico e social, tem tido como fator decisivo o progresso técnico, e tem assentado na industrialização, nos serviços de alto valor acrescentado e no comércio externo (com exportações baseadas em especializações de elevado valor acrescentado). Mostro também que o valor médio exportado por empresa, que é revelador do estádio em que uma economia se encontra face ao processo referido, é, em Portugal, praticamente o mais baixo de todos os países da UE, com uma fraqueza relativa especialmente notória no que respeita às grandes empresas.
    Alfredo Marques

    1. Falta-nos politicos com a visão estratégica, tipo D. Dinis ou Engº Duarte Pacheco…
      Enquanto perdurar as lutas de capelinhas nos decisores politicos portugueses, não iremos longe….

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Skip to content